domingo, 3 de maio de 2009

A Pessoa é para o que Nasce

A Pessoa é para o que Nasce
Estudo da estrutura cinematográfica
presente no documentário de Roberto Berliner, de 1998.




A Narrativa das Personagens

A introspectiva de Roberto Berliner nos remete a um cinema direto, pelo qual ele procura não interferir pela palavra, ou seja, não conduz uma narrativa direcionada. O diretor foca seu eixo cinematográfico a uma narrativa do povo, o povo é quem está narrando característica básica que ele traz da escola do cinema novo brasileiro, provindo dos documentários de Sabino e Jabor. Apesar do uso destas técnicas desenvolvidas pelos documentaristas dos anos 60 e 70, no Brasil, o conceito de voice over, no entanto, não aparece. Esta é uma estratégia estética que Berliner cria para gerar uma nova atmosfera dos documentários. Em A Pessoa é para o que Nasce quem conversa com o expectador não é uma voz de Deus, nem mesmo uma voz anônima (mesmo que soubéssemos de quem ela é). A pessoa que conversa com o expectador está presente em cena, na imagem.

A imagem é bastante forte, ele foca bem as personagens, pois são elas que criam o roteiro em si. Berliner apenas direciona determinados focos para poder criar um eixo para seu documentário. Diferente do documentário moderno, dos anos 90 e mais tarde dos anos 2000, Berliner não se prende a um resultado preciso e previamente pensado. Seu documentário não tem partido, ou seja, ele não quer convencer o expectador a crer em um objetivo ou outro. Ele navega livre sobre o assunto abordado deixando a resposta, os resultados, fluírem naturalmente, característica que ele aprendeu ao estudar o documentário francês. Enquanto joga com palavras das próprias pessoas entrevistadas e brinca com o documentário de rua, ele traz um tópico forte, provindo do cinema de Godard, que é a introjeção no cinema documental direto de imagens ficcionais, ou de cenas construídas para ilustração de alguma narrativa ou descrição feita pelos entrevistados, ou personagens do documentário.

Assim, A Pessoa é para o que Nasce, inicia-se com imagens poéticas, construídas por Berliner, através de descrições feitas pelas próprias personagens. São imagens que representam o sonho visual que as três irmãs cegas de Campina Grande têm. Desta poética visual ficcional, caminha-se para a primeira aparição das personagens eixo do documentário. Aqui vemos a influência do documentário de Louis Malle, que deixa livre as narrativas das personagens, não as conduzindo por uma fonte de perguntas. As perguntas não conduzem as personagens entrevistadas, apenas encaminham o documentário para que este não fique disperso, porém sem direcionar a resposta, conclusão, do mesmo.


A Imagem Social

O cinema dos anos 60 e 70 trouxe um documentário político, seja no contexto francês, seja no panorama do Brasil, e procurava mostrar as classes sociais. Berliner de alguma forma, mesmo que camuflada, transita por este cinema, no entanto, seu foco não é a política em si, o que mais tarde ele acaba realizando, ao trabalhar com a versão extensa do seu documentário. Ele apresenta, sutilmente, os problemas das classes sociais, e acima disto, ele gera contrapontos com o problema da discriminação, do preconceito.

Roberto Berniler saiu às ruas em 1997 para as filmagens da série de TV ‘Som da Rua’. Entre sanfoneiros, violeiros, caixeiras e muita gente que senta na sarjeta e faz musica em troca de miúdos, Roberto encontrou Regina, Maria e Conceição. Só que elas já não cantavam mais. Eram pessoas tristes, sofridas e sem seus ganzás não se sentiam mais à vontade para soltar a voz no meio da rua. Mas transmitiam um certo brilho que chamou a atenção do diretor. A simpatia, a humildade, a simplicidade e a sinceridade das três irmãs mexeram profundamente com Berliner. A produção providenciou os instrumentos e elas fizeram parte do programa. Enquanto os acertos da equipe técnicas eram feitos, o diretor teve a oportunidade de conviver melhor com o brilho que o comoveu. E decidiu que seriam o tema de sua próxima produção.

Diferente de alguns diretores de documentários, Berliner tinha como objetivo, uma temática a ser filmada. Procurar pessoas que trabalhavam com música, porém na rua. Berliner não tinha um foco preciso, um objeto direto. Assim, as personagens de seu documentário surgem ao acaso. Ele consegue com isso, trazer mais a fundo as características do cinema direto, cinema verdade.

Não há a interferência na realidade. Assim como não interfere nas personagens com uma narrativa pronta, ele também não interfere com imagens sugestionáveis. Talvez ele tenha tido esta sorte pelo fato de suas personagens terem deficiência visual. O que interfere no comportamento delas é apenas a presença do diretor e sua equipe (que algumas vezes elas não percebem) e o fato delas saberem que estão sendo filmadas e que serão assistidas por uma grande massa.

Durante a cena inicial, ficcional, inspirada nas descrições das personagens, Berliner utiliza-se de uma possível voice over, no entanto logo vemos que são falas das personagens, que entram em cenas segundos depois continuando com a conversa. Não se caracteriza assim a narrativa externa. È tudo direto. O som é ambiente, e isso fortalece o direto em seu documentário, não fazendo com que uma ou outra trilha sonora interfira na compreensão ou interpretação do documentário. As únicas músicas provém do próprio som criado pelas personagens.

Influência de Jean Rouch

O corte é essencial para sua construção. O corte deste som criado pelas personagens é necessário para que as músicas não sobrepujem as impressões das falas. A imagem recebe um tratamento interessante. O corte que Berliner trabalha é substância de um cinema ficcional, quase raro no documentário, no entanto o cinema de Jean Rouch pode tê-lo inspirado de certa forma. Em Bataille sur le Grand Fleuve, Rouch interpola as cenas de planos-seqüência diretas com imagens dos hipopótamos e detalhes de alguns materiais usados na caça.

Em A Pessoa é para o que Nasce, os cortes são rápidos, secos, diretos, São inserts rápidos das personagens em suas casas, ou na rua tocando seus ganzás. Os planos-seqüência são curtos, mas presentes no filme de Berliner. Vemos uma passagem com as três irmãs cantando uma de suas canções. A letra da canção nos remete não a uma saída da linha de seqüência do documentário, mas a mais uma descrição feita pelas personagens, afinal, a letra narra fatos que elas vivenciam. Coisas pessoais e sentimentos das próprias irmãs.

A partir da música, o documentário perde a característica social exatamente, e ganha um foco pessoal, o que nos remete a proximidade com as personagens. Em O Circo, de Arnaldo Jabor, aparece no documentário brasileiro esta característica, de aproximar o mundo das personagens apresentadas no filme com o expectador. A personagem sai da representação da massa, ou de uma classe social, e passa a ser uma pessoa própria, com sua vida pessoal sendo revelada. Jabor acompanha um dos saltimbancos e mostra crianças, mulheres, a vida da personagem com sua família e seu dia-a-dia (sua moradia, seus objetos pessoais). Seguindo esta linha, Berliner consegue trazer das três irmãs, sentimentos pessoais, narrativas sobre os maridos que tiveram, uma delas inclusive criticando o marido sobre problemas pessoais entre o casal. Outra fala sobre seus sonhos e desejos. A música composta por elas volta a entrar em cena, elas falam sobre seus sonhos, suas angústias, e novamente voltamos para a narrativa delas sobre os maridos.


Técnica de Filmagem

Na técnica de filmagem não há o uso de câmeras diretas, planos-seqüência longos ou de cenas sem cortes. Mas esta técnica é feita com base no cinema que Berliner aprendeu ao estudar Rouch; Rouch trabalhou no cinema direto francês com estes planos-seqüência longos e o não uso do corte constante, mas em alguns filmes já da década de 70, vemos Rouch utilizando de planos com cortes e inserts de closes ou close-ups. Berliner usa da câmera de mão (handcam) e em algumas cenas, como por exemplo, nas cenas em que as três irmãs estão cantando e tocando, ele caminha com esta câmera.

Na sua versão posterior, a versão longa-metragem deste documentário, Berliner caminha mais com esta câmera seguindo as personagens com o uso de um hand-travelling, ou seja, como se a câmera fosse a visão de uma personagem, uma outra personagem que acompanha as personagens principais.

Há um jogo de efeitos visuais criando novamente a estética da visão das três irmãs com deficiência visual, no entanto, desta vez, não é uma ficção em cinema de descrições de sonhos destas personagens, mas sim, o olhar de uma delas sobre os fatos em ocorrência. Assistimos a uma cena do documentário como se fossemos uma delas, como se estivéssemos com a deficiência visual apresentada por elas.

A ficção toma conta apenas com um insert da imagem de um olho, objeto principal do motivo que relevou o processo de escolha das personagens: mulheres com problemas visuais que levam a vida ganhando trocados na rua, tocando ganzás e cantando músicas de autoria própria.

O jogo de closes é bastante forte pois estamos diante de pessoas que não escondem suas deficiências físicas visuais e nem mesmo alguns problemas de cuidado gerados pela pobreza. Elas não escondem os olhos por detrás de um óculos e isto fica bastante forte. O documentário canadense do final dos anos 80, criou uma expressão, “Real Scene”. O responsável por esta expressão foi Arnie Gelbart, fundador da produtora canadense Galafilm. Esta expressão remete ao cinema real, a cena real que não esconde a verdade, nem disfarça a realidade. “Se um homem está com uma ferida no peito, não vou filma-lo de costas, mas sim mostrar que ele está ferido, pois na realidade ele está mesmo ferido”, diz Gelbart.

Entra em jogo o cinema verdade ou cinema direto. Berliner faz questão de em todas as cenas intensificar isto e este seu jogo de closes, principalmente na cena que ocorre aos 5 minutos exatos do documentário, fechando o filme. Para fortalecer esta idéia de “real scene” ou de cinema direto sem modificações da realidade, uma das personagens entra falando sobre o fato de que elas aceitam serem como são, pois não se pode mudar o que é (fisicamente), ela cria a expressão ‘A Pessoa é para o que Nasce’, que torna-se o título deste documentário.

O Som Direto, Ótico e a Trilhas Sonora

Conforme colocado, som é direto, com o som ambiente em uso maior. Há a interpolação das cenas em que as personagens cantam as canções compostas por elas mesmas e há um uso de trilha bastante pequena, provinda dos instrumentos e mãos das próprias protagonistas. Não vemos diretamente o som ótico. O som ótico, termo usado no cinema atual, caracteriza o cinema mudo que constrói o som pela imagem. Hoje este som ótico é usado como estética poética e artística do cinema. Em A Pessoa é para o que Nasce temos as cenas em que são mostradas ficcionalmente as visões das protagonistas. Nestas cenas temos uma leve trilha sonora, mas o o que Berniler consegue com estas cenas é na verdade nos deixar ouvir vozes e sons que não estão no filem. As nuvens e os campos verdes descritos por uma das personagens nos ‘teleportam’ para outra realidade, outro mundo, repleto de sons que não estão presentes no filme.

A Fotografia

Jacques Cheuiche, diretor de fotografia deste documentário, resgata um ar não clean para o documentário. O primeiro projeto de Berliner era trabalhar com câmeras mais modernas e imagens sem manchas com cores vivas. Cheuiche no entanto rompe esta estética, que Berliner já utilizava em seus documentários televisivos, e cria uma estética visual a aprtir da própria realidade apresentada no documentário. Não precisamos de cenário, de ambientes arrumados, temos a parede da própria casa das três irmãs, temos rua desfalcada e uma uma iluminação o mais próximo do natural. Quando a luz apaga na casa das irmãs, em uma determinada cena, podemos notar que a luz era realmente a do ambiente e que não há interferência direta de uma luz montada, uma luz de estúdio (spot, holofote etc). A um ganho assim, de realismo.


O Roteiro

O roteiro de Maurício Lissovisky e Liana Vital Brazil não serviu, como vimos anteriormente, para guiar em suam, o caminho à percorrer do documentário. Lissovisky relata em entrevista cedida ao Canal Brasil, da rede televisiva brasileira de canais fechados Globosat / Net, em 1998, durante o lançamento do curta, que inicialmente apenas escreveu um script contendo o objetivo geral, quem filmar e onde filmar. Já haviam escolhido as irmãs para filmar e ele gerenciou apenas um papel para registro desta escolha. Depois de feitas as imagens, então ele segue para seu escritório onde, assistindo às gravações junto ao Berliner, ele convida Liana Brazil e juntos fazem o roteiro pós filmagem para a edição do curta. Neste roteiro, ele segue bastante as características do cinema francês documental, no qual procura não brincar com efeitos digitais, efeitos de transição de cenas, compreendendo a importância para o cinema direto, do corte seco e do não uso de efeitos visuais, mantendo-os apenas para as cenas que descreveriam em imagens os sonhos e visões das três irmãs, protagonistas do documentário.
Berliner passa a idéia destas cenas para Lissovisky e Liana Brazil, e eles preparam a narrativa visual de maneira genial. Não brinacam com cenas fantásticas ou imagens poéticas, mas sim com imagens diretas assim como descritas pelas protagonistas. Liana ainda sugere, segundo diz Lissovisky, na entrevista cedida ao Canal Brasil, que as cores fossem bastante respeitadas às descrições das personagens. Berliner coletou algumas descrições extras, que não se encontram no documentário, para realização de tal característica, estética visual. O que as irmãs, com toda a deficiência visual, entendem por cor? Como elas descrevem as cores, visto que elas não as enxergam?

No início do documentário, na primeira cena feita nesta estética, temos uma das irmãs relatando que em seu sonho ela vê ‘... o mato verde...”. Isto chama a atenção de Berliner que procura investigar entre as protagonistas, como é este verde para elas. Lissovisky e Liana Brazil acreditam que este é um ponto importante para se explorar no documentário e principalmente na sua estética. Então podemos levantar uma indagação.






Direto, Real, ou Direcional?

Se Berliner trabalha com o cinema direto e busca deixar isto bastante claro em seu documentário, como então podemos descrever este uso estético que interfere no direto? Então notamos que a concepção narrativa, o contexto real é prevalecido, ou seja, as irmãs são mostradas como elas são. Não há interferência nas falas delas, que são espontâneas, não há interferência de cenário, e nem de figurino. A interferência, como relatado no texto acima, era do diretor e sua equipe e o fato das protagonistas saberem que estavam sendo filmadas. Mas até este ponto, tudo relacionava ao cinema direto francês de Rouch ou o cinema novo de Jabor.

Esta estética visual não têm tamanha relevância quanto aos fatos, a não ser pela sua interferência que nos leva a refletir sobre o modo de ver das personagens. Seria esta uma intervenção forte e talvez argumento para retrair o filme da sua posição de cinema direto? No entanto, a um ponto importante a ser levantado. O cinema das cores já estava em rigor nos anos 50, 60 e 70, e ainda assim muitos diretores do cinema verdade / direto francês e do cinema novo brasileiro utilizavam-se do documentário preto e branco.

Ao trabalharem com uma película preta e branca, a monocromia da não-cor talvez gerasse também uma estética diferenciada, no entanto, pela época em questão, talvez o público estivesse mais aproximado desta linguagem.

Quando entra o cinema da cor nos documentários, talvez os primeiros à serem exibidos tivessem gerado análises, interpretações bastante diferenciadas do objetivo primário do diretor. As cores influenciavam muito na leitura da época, hoje elas são, muitas vezes, influenciadoras, pelo jogo de montagens destas cores e efeitos visuais.

Berliner se aprimorou deste uso das cores, mas não perdeu desta forma o “real scene” de Gelbart. As cores mexem na estética visual de alguns segundos de filme, mas não retribuem signos e significâncias aos preceitos das cenas livres e reais, o roteiro não foi baseado neste jogo de cores e nem mesmo neste direcionamento. Pois o documentário, nos revela as três irmãs, nos mostra quem elas são e o que fazem, mas de forma bastante subjetiva, não relatam nomes, dados técnicos e nem mesmo situa geograficamente e temporalmente. Somos levados apenas a ver três mulheres falarem sobre si mesmas e sobre seus sonhos e desejos.

Como contraponto, nos vemos agredidos pelo nosso preconceito embutido. Estamos acostumados a ver os cegos por outra perspectivas, pessoas isoladas do mundo por sua deficiência, que dependem de ajuda para viver. No entanto o choque da estética nos faz ver o mundo como elas, e a narrativa das personagens geram inquietações. Os deficientes visuais não são exatamente como pensamos que eles são. Eles tem uma vida bastante próxima das nossas, exceto pela limitação visual.

Quando Berliner resolve deixar toda narrativa no direto é exatamente isso que ele nos proporciona. Este contraponto no entanto é retorcido, na versão posterior, o longa-metragem, onde falas do diretor e o voice-over acabam tomando conta do roteiro. Isto acontece talvez pela estética do cinema atual e pelo público que hoje freqüenta as salas de projeção.

Um cinema direto ao estilo Rouch, Godard, Sabino ou Jabor, talvez não fosse tão aceito quanto o cinema estético atual provindo dos avanços tecnológicos e da nova linguagem documental exigida no mundo contemporâneo – nossa realidade é outra; nossa voz de Deus é outra; nossa voz do povo é outra, pois nosso povo é outro, nossos problemas são outros. Mas ainda assim, A Pessoa é para o que Nasce permeia entre estes dois mundos – o documentário verdade ou direto dos anos 50, 60 e 70, seja no Brasil, seja no Canadá ou na França e o documentário atual.

Um comentário:

  1. Ótima análise!!!
    Concordo sob o preconceito que está inserido em nosso olhar para o que não é convencionalmente belo!
    Abç,
    Denise Marsco

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