domingo, 22 de fevereiro de 2009

Um Cão Andaluz

Um Cão Andaluz

análise da imagem concreta e abstrata
na elaboração do filme.

Por Igor Capelatto

A estrutura técnica de Um cão andaluz é simplesmente um jogo de pequenos storytellers nos quais a própria imagem é o narrador. Ela é toda a cena, suprindo a necessidade de um som, de um diálogo ou de algum texto. Um cão andaluz não é enquadrado nos nossos preceitos de cinema. Segundo Roger Ebert[1], a técnica da não-linearidade ou da não-construção de uma seqüência de história (trama) é algo que nossa mente não está apta a aceitar, todavia é a genialidade que rompe os sentidos humanos adquiridos por costumes ou impostos ao homem por meio de uma sociedade.

Reconhecemos assim um filme com cenas aleatórias. No entanto, se analisarmos esta aleatoriedade segundo Carl Gustav Jung[2], notaremos o quanto ela talvez tenha sim uma seqüência de história. Cada cena foi jogada ao acaso, como planos-seqüência isolados, sem nexo entre um e outro, mas pelas teorias de Jung podemos entender que mesmo imagens sem seqüência, colocadas aleatoriamente uma seguida da outra, de alguma forma, esta seqüência supostamente aleatória foi construída pelo inconsciente humano. No caso, pelo inconsciente de Buñuel e Dalí.

No entanto, por ser subjetiva e inconsciente esta seqüência de cenas, torna-se quase que uma terapia dos autores surrealistas de Um cão andaluz. É muito pessoal o processo. O filme então é reconhecido pelos críticos como um filme-imagem, pois são as imagens mais fortes do que qualquer outro elemento cinematográfico em cena. As imagens superam até mesmo a técnica (ângulos de câmera, takes, atores e efeitos especiais) pela qual foram filmadas, se bem que o corte no olho nos instiga a querer saber mais como a cena foi feita, mesmo sabendo do uso de um olho de animal, a construção, a montagem da cena nos parece ainda impossível, se imaginarmos a tecnologia da época.

Numa análise primária destas imagens, Erika Savernini[3] nos revela em sua tese a necessidade de trabalharmos com a imagem real e a imagem imaginária. A imagem real é aquela que nos conduz a vermos a cena com olhos de possibilidade, ela é uma cena possível, concreta. A imagem imaginária, por sua vez é aquela que nos conduz a um processo de imaginação, uma cena que não conseguimos ver a imagem na sua concretude, como o osso desencarnado.

Para Jacques Amount[4], a imagem concreta é aquela que existe enquanto temos referências reais dela, e a imagem abstrata (imaginária para Savernini) é aquela na qual não temos referências reais. Podemos associar estes conceitos à dicotomia das imagens de Um cão andaluz. Buñuel e Dalí talvez não tenham tido consciente pensamento sobre estes conceitos, mas de certa foram o inconsciente deles teve. As formigas na mão constroem um imagem concreta, pois conhecemos formigas, temos noção do que é levar uma picada de formiga e imaginamos o qual seria terrível tê-las em nossas mãos, de certa foram nos devorando. Já a famosa cena do corte no olho é um conceito abstrato, uma imagem abstrata, pois não temos a referência do que é ter o olho cortado (e mesmo que alguém a tenha, esta pessoa sim, tem a referência, mas ela não é comum, universal, podemos imaginá-la, mas não temos referência da dor ou sensação).

O concreto para Amount é também o saber interpretar a imagem e o abstrato é quando não somos capazes de interpretar os signos presentes naquela imagem. Amount coloca que “um quadro de Picasso é considerado abstrato, pois emerge diversos significados, que não são comuns entre os observadores deste quadro, e muitos não-significados, ou seja, não é uma imagem com um significado pronto”. Podemos dizer que os quadros de Dalí têm o mesmo efeito, talvez até mais fortes e talvez mais forte ainda seja a construção de seus filmes junto a Buñuel que criam as cenas e seus movimentos da mesma forma com que elas foram sonhadas pelo artista surrealista.

A cena do piano é uma cena bastante forte enquanto imagem. Um homem empurra um piano, mas por que um piano e não um vagão de trem que é mais pesado e daria, talvez, mais tensão à cena? O piano é um ícone que inconscientemente traz muitos significados, tendo Jung mesmo estudado seus significados. Podemos observar que quando queremos mostrar algo muito pesado caindo, não jogamos uma geladeira pela janela, mas sim um piano. Os desenhos animados da Hanna-Barbera, da Warner Bros. ou até mesmo da Walt Disney Company trazem este jogo de imagem – um piano que cai pela janela de um prédio e se espatifa no chão, ou um piano que cai através dos degraus de longas escadas.

O homem puxando o piano em Um cão andaluz é uma cena anterior a estes desenhos animados, é construída para adultos assistirem, mas o ícone do piano nos desenhos animados é uma ilustração de como este símbolo é forte no inconsciente humano. Talvez a imagem concreta esteja mesmo fluindo no filme apenas como uma representação associativa da imagem abstrata. Pois se o piano é representação de um sentimento resguardado no inconsciente, ou seja, um signo abstrato, ao mesmo tempo podemos nos imaginar empurrando um piano.

Ainda, segundo Jung, a construção da imagem pode causar dois tipos de medo, se seu objetivo é esse de nos incomodar na sensação do ‘pode acontecer conosco’. O concreto causa medo decorrente, perceptível, e o abstrato causa o medo do desconhecido. A criança com medo de perder a mãe é o sentimento concreto, e a criança com medo da mão do monstro que está debaixo da cama e vai pega-lo durante a noite é o sentimento abstrato. A mãe existe e pode morrer, o monstro não existe, mas pode pegá-lo.

Um cão andaluz traz essa analise ao plano principal. Um osso é concreto, mas ele desencarnado é abstrato. Temos medo das formigas, “se vermos”, segundo Savernini, “um monte de saúvas subindo em nossa perna, temos a estranha sensação que a personagem de Um cão andaluz teve”, porém por não termos o registro da sensação do olho cortado, “não temos a sensação da personagem de Um cão andaluz mas uma sensação imaginária construída pela nossa mente, a iminha imaginação e medo deste sentido não será a mesma de outra pessoa. Se eu ver uma navalha se aproximar de mim, talvez eu até coloque as mãos sobre os olhos para protegê-los”.

Signos isolados causam estranhezas e significâncias personalizadas. Em Um cão andaluz poderíamos analisar cada uma das cenas isoladamente e teríamos teses e mais teses sobre elas. Poderíamos encontrar diversas percepções e análises sobre estes signos concretos e abstratos, sobre a imagem real e a imagem imaginária. No entanto não estamos lidando com quadros, com pinturas ou fotografias, e sim com cinema. Cinema é a construção de imagens em uma seqüência – a seqüência de imagens, mesmo que aleatórias. Desta forma muitas vezes a cena, no cinema, mesmo que seja independente no contexto de outras cenas, ela é intensamente influenciada pela cena anterior e posterior a ela. O olho sendo cortado nos traz a significância, no contexto geral do filme, de que é melhor que ele seja mesmo cortado do que vermos os ‘horrores’ que se seguem adiante. Uma ‘censura ao sentido humano da realidade’ conforme coloca Savernini. A autora retrata que se vermos a cena da mão com formigas isoladamente, ela é uma cena com certos significados que podem remeter a devoração da carne humana, a não possível sensação de concretude, de pegar algo, a mão que é frágil e que tudo sente – através do toque – “o tato como extrema importância”. Mas ela seguida da cena do corte no olho “transmite que o tato é só mais um sentido sensorial que está sendo degradado, destruído pela realidade. Pois o olho, que é talvez o mais intenso de todos os sensores humanos já foi destituído de sua função”.

Enfim, Um cão andaluz é totalmente subjetivo, mesmo na sua concretude e podemos então, pela necessidade humana de relacionar fatos, encontrar uma lógica seqüencial na sua trama. Uma seqüência que talvez estivesse dentro do inconsciente de Dalí e Buñuel. E mesmo o nome do filme, por mais aleatório que tenha sido, remete ao tipo de cachorro que provoca medo nas pessoas na Espanha (terra natal de Buñuel e Dalí), a raça de cachorro usada para caça, pelo exército, que é treinada a devorar homens – os cães andaluz. E Um cão andaluz devora os nossos sentidos humanos.

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[1] EBERT, Roger. A magia do cinema. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

[2] JUNG, C. G.. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

[3] SAVERNINI, Érika. Índices de um cinema de poesia: Píer Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

[4] AMOUNT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papirus, 1993.

2 comentários:

  1. Oi, Igor, tudo bem?
    Muito boa a exposição que fez do filme. Coincidência ou não, para referenciar Jung como vc, também escrevi algo, um pouco mais modesto, sobre Um Cão Andaluz num blog em que escrevo também sobre cinema. Dê uma olhada www.roteiro77@blogspot.com
    Abraço.

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    1. Modesto que nada, vc é genial tbm, adorei seu texto. abraços.
      Igor

      p.s. este blog estará desativado, acesse meu novo blog de 2013... http://igorcapelatto.blogspot.com.br

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