quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Quando Caem as Estrelas - instinto e arquétipo no Surrealismo

por Igor Capelatto


entr'act - rene clair


O processo imagético cognitivo expressado pelo inconsciente transcende a retórica do signo rompendo as barreiras de sua mensagem dicotômica, vazando por entremeios de sua funcionalidade de portador da mensagem ou de fragmento dela, gerando outros significados e propriedades para a imagem composta no universo dos impulsos elétricos. Esta imagem outrora simbólica e expressada por meio de significações é induzida no campo material tornando-se palpável, do seu real imaginário passa para um real tátil. Enfrentam-se dissonâncias e ressonâncias de suas múltiplas interpretações. É necessário entender que o universo do signo não está desassociado dos sentidos perceptivos que são capazes de compreender o campo das imagens como um espaço concreto, uma arquitetura que pode ser tocada. Ao libertar-se das exigências da lógica e da razão, encontramos uma zona de vizinhança com a natureza da órbita do Surrealismo.

A arena mais próxima na qual talvez nasçam todos os signos, segundo André Breton (1896-1966), autor do Manifesto do Surrealismo, é o sonho. Os impulsos cerebrais do inconsciente de alguma maneira não passariam de ferramentas geradoras de signos. Não seria o sonho uma manifestação do cérebro, mas todas as manifestações estariam presentes dentro dos sonhos. Traduzir os sonhos em pinturas, fotografias, textos, filmes ou quaisquer continentes artísticos seria uma maneira de revelação desse mundo outorgado ao confinamento exclusivo do sono revelando sua existente fisicalidade.

Joseph Campbell (1904-1987) em O Poder do Mito conta a experiência de um xamã ao entrar em contato com o mundo das imagens dos sonhos. Quando se depara com aqueles inúmeros signos, o xamã encontra respostas para as ações de sua tribo além de muitas previsões. Quando o transe cessa, Campbell pergunta ao xamã se este havia voltado para sua sã consciência e a resposta do velho índio é de que ele nunca havia deixado de estar consciente, mesmo enquanto navegava pelo mundo dos sonhos. O xamã finaliza dizendo que o mundo dos sonhos é tão real e presente que é difícil saber quando estamos habitando um mundo ou outro.

Salvador Dalí (1904-1989) certa vez levantou uma indagação se o que ele pintava eram as imagens do mundo dos sonhos ou se o mundo em que ele habitava para pintar seria o universo dos sonhos e ainda, se o que ele pintava é que seria manifestação deste outro mundo ao qual as pessoas chamavam por convenção de real. Dali gostava de dizer que todas as imagens, aquelas que as pessoas chamavam de reais e aquelas que seriam provenientes dos sonhos, estariam no mesmo estágio, interagindo e coexistindo entre si e assim, e as referenciava como “representações reais dos mitos e arquétipos”.

Para Campbell, “o mito é uma manifestação em imagens simbólicas, metafóricas, das nossas energias internas, mobilizadas pelos órgãos do corpo em conflito entre si. Este órgão quer isto, o outro quer aquilo”. Esta dualidade seria capaz de reger forças que reorganizam os conceitos e noções que temos do que seria o real. Este real que se faz presente no campo do consciente.

Carl Gustav Jung (1875-1961) coloca que o consciente é orientado para o presente imediato e seu próprio ambiente o que traz uma lógica direta de associação com a primeira instância palpável deste pressuposto real. Campbell apresenta a possibilidade de que o presente talvez não exista desta forma imediata, pois talvez não haja um imediato, sendo imaginável que o eterno seja o presente. Para o Surrealismo não há diferenciação entre passado, presente e futuro, o tempo é eterno e de alguma forma etéreo. Não havendo distinção entre os chamado real e imaginário, não havendo um tempo linear, os signos são incitados a existirem por si mesmos, e sendo esta autonomia infinita, Campbell a associa aos arquétipos.

Signo, do grego secnon, denomina-se parte. O não-todo deste meio, da imagem, exige uma busca de traduções através do processo de semiose[1] repercutindo numa tentativa de transformar o signo em um todo. O que completa o signo, para os surrealistas, e o transforma em um todo, é o processo de afirmação da concretude de sua existência, quando as imagens são excitadas a existirem por si só, pois são objectos que recebem significações que estão além das explicações por meio de uma linguagem determinada pelo homem. Objectos que passam a serem compreendidos como símbolos. Jung profere que “um símbolo não traz explicações; impulsiona para além de si mesmo na direção de um sentido ainda distante, inapreensível, obscuramente pressentido e que nenhuma palavra de língua falada poderia exprimir de maneira satisfatória”.

Dentre os surrealistas contemporâneos de André Breton, havia uma aceitação de que a tradução ou transcrição dos sonhos tornando-os reais e palpáveis era quase que um instinto, pois o sonho por sua vez deveria de ser resultado do instinto. Instinto, para Jung é “um impulso natural, cego e dirigido para certas ações, sem deliberação e, muito freqüentemente, sem uma representação na consciência”. Talvez, assim, o instinto fosse um impulso do inconsciente. Dalí dizia que não temos controle sobre os signos, sobre as imagens de nossos sonhos. Agimos muitas vezes sobre impulsos aos quais não temos domínio; “é quase como se nossos instintos primitivos viessem à tona, são reações instintivas que temos quando deparamos com a realidade dos sonhos”.

Este ser primitivo que age pelos instintos transfigura uma constância de ações as quais ele não tem autonomia, Campbell associa a uma marionete, a qual há um ser maior que controla todos os seus movimentos, todas as suas atitudes, e coloca que “quando este ser primitivo tem pela primeira vez a ação de olhar o sonho e querer compreendê-lo” surge o primeiro homem pensante, chamado por Edgar Morin (nascido em 1921) de sapiens-demens.

Em muitas culturas primitivas, observa-se que o surgimento do homo-erectus está muitas vezes associado à adoração de um ser superior, muitas vezes instintiva. O homo-erectus tem uma necessidade de se elevar ao ser superior. Campbell diz que “muito diferente do que o ser pensante, o homem primitivo elevava-se, pois a idéia de existir um ser superior a ele remetia à idéia de que este ser estaria acima dele, no céu”. Entretanto o ser pensante não olha mais para cima, quando o sapiens-demens começa a confrontar os signos e tenta compreende-los, ele se julga superior ao ser ou seres que ‘estão nos céus’ e assim não mais se eleva a ele(s). “Há uma necessidade de se curvar diante dos deuses, não como um ato de adoração, mas como um meio de se castigar e afirmar o pecado que há dentro de nós”, diz Campbell e lembra que “antigamente, na igreja católica, os padres ficavam de frente para o altar e rezavam a missa olhando para o deus cristão”.

Compreender os signos e dominá-los, ou “interpretá-los a nossa necessidade” como coloca Jung, leva o homem a um status que o torna dominador de suas pulsões, porém, “estas pulsões, ou instintos, são tão fortemente vividos por uma autonomia” que, segundo Campbell, “gera o caos”. E o caos é “resultado de uma desordem dos signos refletidos nos conteúdos universais, os fenômenos de natureza coletiva”. Os arquétipos são tão necessários ao homem, em sua busca de existência, que não vivenciá-los, ou ignora-los, é o motim de todo este caos. O signo perde seu significado. Não havendo mais o interprete, o signo fica sem sentido e mesmo em sua autonomia, começa a existir em um mundo isolado e o homem passa a não mais compreender os símbolos que regem a existência de todas as coisas. Para Jung, o arquétipo “é a percepção do instinto de si mesmo ou como o auto-retrato do instinto”. Os arquétipos são “reflexos das necessidades primitivas do homem, como a necessidade da mãe protetora, os impulsos de vida e morte encontrados nos deuses (...) e toda uma necessidade diante das transformações culturais”.

As representações dos sonhos para os surrealistas compreendiam em sua maior parte um encontro com os arquétipos e a identificação destes arquétipos resultaria em uma análise primária na orientação das buscas inconscientes do artista que a representou em sua obra. É possível neste contexto fazer uma analogia entre arquétipos e desejos. Muitos desejos humanos se assemelham aos arquétipos.

Jan Svankmajer (nascido em 1934), acerca do principio do surrealismo, diz: “arquétipos são eternos signos necessários para a existência humana. A arte tenta representa-los, o Movimento Surrealista surgiu com o intuito de expressa-los e ir além: torna-los palpáveis”. Svankmajer ainda coloca que “na arte a representação do arquétipo não está presente somente na imagem criada pelo artista, mas na maneira como o artista executa sua obra”. Como eram presentes os arquétipos anima e animus na obra de Salvador Dali, segundo Breton “muitas das obras dalinianas representativas dos arquétipos anima e animus foram concebidas na presença de Gala, sua mulher”. Em Man Ray o arquétipo da Grande Mãe é reconhecido não diretamente em sua obra, mas no fato de que a primeira metade de sua produção (tanto dada quando surrealista) fora desenvolvida nos aconchegos de sua mãe. Breton comenta que “Ray buscava oposições entre a imagem revelada e a imagem negativa contorcendo a visão de preto e branco, do espaço em que o objeto estava inserido e o espaço que ele representava, como a criança, ainda em germinação, dentro do útero materno. Man Ray transpassa da mãe-comum para a grande mãe quando exterioriza o útero e o torna universal, o útero que nos liga por um cordão umbilical representado pela imagem de um prego.”

Campbell nos mostra que a arte, a religião, enfim, os meios sublimatórios são veículos de comunicação entre o homem e os arquétipos. De maneira diferente, a arte transcende a religião, pois não depende de uma crença universal, apesar de seguir normas e padrões coletivos, “o artista pode desenvolver sua própria maneira de produção e uma arte extremamente pessoal”, enquanto que “as regras religiosas são mais exigentes”. Coloquemos aqui a comparação que Salvador Dalí fez de seu Método Crítico-Paranóico com uma religião. Para Dalí, seu método é “como uma religião, tem todo o seu ritual, tem suas regras e seus deuses próprios, porém não depende de um grupo de pessoas para existir. (...) O católico, por exemplo, pode existir sozinho, mas o catolicismo só existe enquanto coletivo. Eu não preciso me juntar ao Lorca ou ao Picasso para que a minha obra surrealista exista. Sozinho no meu ateliê faço existir o Surrealismo”.

Mas “o coletivo é tão presente e necessário que a busca sublimatória se torna mais facilmente palpável em contextos os quais o indivíduo encontra os arquétipos explicados. Na religião é facilmente visível. Como se os arquétipos viessem com um manual, um dicionário”, reforça Campbell. Se para cada indivíduo o arquétipo estará ligado a uma individuação, "seria inconveniente determinar os significados, tornar os signos elementos únicos de significação, fechados e sem possibilidades de se transformarem – mas o consciente se separou do inconsciente e os signos começaram a perder suas multiplicidades. O dragão que outrora representava força, nascimento, ou morte, em muitas culturas contemporâneas ele representa apenas um passado fantasioso do mundo medieval ou as festas do extremo oriente”.

“É necessário sublimar”, diz Campbell referindo-se a autores da psicologia contemporânea, “independente da maneira pela qual, a sublimação é a fuga da realidade perturbadora do inconsciente que vaza por meios palpáveis para que a pessoa possa exteriorizar os seus demônios internos”. Os signos, arquétipos, toda imagem proveniente das profundezas do inconsciente devem coexistir com o plano o qual chamamos de consciente, pois o homem é regrado pela relação entre estes dois universos. “Transcender os signos é torná-los superiores ao domínio humano. A arte da sublimação é deixar com que estes signos saiam do plano ‘astral’ e pisem em terreno firme, que se tornem objectos táteis, deixar com que a estrela caia, para que possamos pega-la”.

“Por isto, não admira que tenha sido sempre uma questão candente para os homens de todas as épocas e todas as religiões saber qual a melhor maneira de se posicionar diante destas determinantes invisíveis. Se a consciência nunca se tivesse dissociado do inconsciente – acontecimento que se repete eternamente e que é simbolizado como queda dos anjos e desobediência de nossos primeiros pais – este problema nunca teria surgido nem tampouco a questão da adaptação às condições ambientais... da mesma forma que o meio ambiente assume um aspecto amigável ou hostil para o homem primitivo, assim também as influências do inconsciente lhe parecem um poder contrário com o qual ele deve conviver como convive com o mundo visível. Suas inúmeras práticas mágicas servem a esse objetivo. No nível mais alto da civilização, as religiões e as filosofias preenchem esta mesma finalidade e, sempre que um tal sistema de adaptação começa a faltar surge um estado geral de inquietação e fazem-se tentativas de encontrar formas adequadas de convivência com o inconsciente” , coloca Jung.

Para finalizar, podemos citar um velho ditado chinês, lembrado por Campbell: “Aquele lugar onde as imagens navegam sozinhas - deixe que ele determine o seu caminho. Não tente domina-lo, pois somos pequenos pontos neste imenso céu”.

BIBLIOGRAFIA

BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.

CAMPBELL, Joseph. Mito e Transformação. São Paulo: Editora Ágora, 2008.

DALÍ, Salvador. Líbero contra a arte moderna. Porto alegra, RS: L&PM Editores, 2008.

JUNG, C. G. A dinâmica do inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984.

JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

KING, Elliott. Dalí, Surrealism and Cinema. Reino Unido: Kamera Books, 2007.

PONGE, Robert. Surrealismo e Mundo Novo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1999.

REFERÊNCIA VIDEOGRÁFICA

O Poder do Mito, DVD, COR, 354 minutos, EUA. 1988, diretor: MOYERS, Bill.

REFERÊNCIA DE INTERNET

Dicionário Crítico de Análise Junguiana - www.rubedo.psc.br, acessado em Novembro de 2009.

Jan Svankmajer - www.jansvankmajer.com, acessado em Novembro de 2009.



[1] Semiose: 'todo processo em que algo (veículo significativo) funciona como sinal de um designatum (aquilo a que o sinal se refere), produzindo um determinado efeito ou suscitando uma determinada resposta (interpretante) nos agentes (intérpretes) do processo' (SILVA, V. Teoria da Literatura, 1986, p.181)

domingo, 3 de maio de 2009

A Pessoa é para o que Nasce

A Pessoa é para o que Nasce
Estudo da estrutura cinematográfica
presente no documentário de Roberto Berliner, de 1998.




A Narrativa das Personagens

A introspectiva de Roberto Berliner nos remete a um cinema direto, pelo qual ele procura não interferir pela palavra, ou seja, não conduz uma narrativa direcionada. O diretor foca seu eixo cinematográfico a uma narrativa do povo, o povo é quem está narrando característica básica que ele traz da escola do cinema novo brasileiro, provindo dos documentários de Sabino e Jabor. Apesar do uso destas técnicas desenvolvidas pelos documentaristas dos anos 60 e 70, no Brasil, o conceito de voice over, no entanto, não aparece. Esta é uma estratégia estética que Berliner cria para gerar uma nova atmosfera dos documentários. Em A Pessoa é para o que Nasce quem conversa com o expectador não é uma voz de Deus, nem mesmo uma voz anônima (mesmo que soubéssemos de quem ela é). A pessoa que conversa com o expectador está presente em cena, na imagem.

A imagem é bastante forte, ele foca bem as personagens, pois são elas que criam o roteiro em si. Berliner apenas direciona determinados focos para poder criar um eixo para seu documentário. Diferente do documentário moderno, dos anos 90 e mais tarde dos anos 2000, Berliner não se prende a um resultado preciso e previamente pensado. Seu documentário não tem partido, ou seja, ele não quer convencer o expectador a crer em um objetivo ou outro. Ele navega livre sobre o assunto abordado deixando a resposta, os resultados, fluírem naturalmente, característica que ele aprendeu ao estudar o documentário francês. Enquanto joga com palavras das próprias pessoas entrevistadas e brinca com o documentário de rua, ele traz um tópico forte, provindo do cinema de Godard, que é a introjeção no cinema documental direto de imagens ficcionais, ou de cenas construídas para ilustração de alguma narrativa ou descrição feita pelos entrevistados, ou personagens do documentário.

Assim, A Pessoa é para o que Nasce, inicia-se com imagens poéticas, construídas por Berliner, através de descrições feitas pelas próprias personagens. São imagens que representam o sonho visual que as três irmãs cegas de Campina Grande têm. Desta poética visual ficcional, caminha-se para a primeira aparição das personagens eixo do documentário. Aqui vemos a influência do documentário de Louis Malle, que deixa livre as narrativas das personagens, não as conduzindo por uma fonte de perguntas. As perguntas não conduzem as personagens entrevistadas, apenas encaminham o documentário para que este não fique disperso, porém sem direcionar a resposta, conclusão, do mesmo.


A Imagem Social

O cinema dos anos 60 e 70 trouxe um documentário político, seja no contexto francês, seja no panorama do Brasil, e procurava mostrar as classes sociais. Berliner de alguma forma, mesmo que camuflada, transita por este cinema, no entanto, seu foco não é a política em si, o que mais tarde ele acaba realizando, ao trabalhar com a versão extensa do seu documentário. Ele apresenta, sutilmente, os problemas das classes sociais, e acima disto, ele gera contrapontos com o problema da discriminação, do preconceito.

Roberto Berniler saiu às ruas em 1997 para as filmagens da série de TV ‘Som da Rua’. Entre sanfoneiros, violeiros, caixeiras e muita gente que senta na sarjeta e faz musica em troca de miúdos, Roberto encontrou Regina, Maria e Conceição. Só que elas já não cantavam mais. Eram pessoas tristes, sofridas e sem seus ganzás não se sentiam mais à vontade para soltar a voz no meio da rua. Mas transmitiam um certo brilho que chamou a atenção do diretor. A simpatia, a humildade, a simplicidade e a sinceridade das três irmãs mexeram profundamente com Berliner. A produção providenciou os instrumentos e elas fizeram parte do programa. Enquanto os acertos da equipe técnicas eram feitos, o diretor teve a oportunidade de conviver melhor com o brilho que o comoveu. E decidiu que seriam o tema de sua próxima produção.

Diferente de alguns diretores de documentários, Berliner tinha como objetivo, uma temática a ser filmada. Procurar pessoas que trabalhavam com música, porém na rua. Berliner não tinha um foco preciso, um objeto direto. Assim, as personagens de seu documentário surgem ao acaso. Ele consegue com isso, trazer mais a fundo as características do cinema direto, cinema verdade.

Não há a interferência na realidade. Assim como não interfere nas personagens com uma narrativa pronta, ele também não interfere com imagens sugestionáveis. Talvez ele tenha tido esta sorte pelo fato de suas personagens terem deficiência visual. O que interfere no comportamento delas é apenas a presença do diretor e sua equipe (que algumas vezes elas não percebem) e o fato delas saberem que estão sendo filmadas e que serão assistidas por uma grande massa.

Durante a cena inicial, ficcional, inspirada nas descrições das personagens, Berliner utiliza-se de uma possível voice over, no entanto logo vemos que são falas das personagens, que entram em cenas segundos depois continuando com a conversa. Não se caracteriza assim a narrativa externa. È tudo direto. O som é ambiente, e isso fortalece o direto em seu documentário, não fazendo com que uma ou outra trilha sonora interfira na compreensão ou interpretação do documentário. As únicas músicas provém do próprio som criado pelas personagens.

Influência de Jean Rouch

O corte é essencial para sua construção. O corte deste som criado pelas personagens é necessário para que as músicas não sobrepujem as impressões das falas. A imagem recebe um tratamento interessante. O corte que Berliner trabalha é substância de um cinema ficcional, quase raro no documentário, no entanto o cinema de Jean Rouch pode tê-lo inspirado de certa forma. Em Bataille sur le Grand Fleuve, Rouch interpola as cenas de planos-seqüência diretas com imagens dos hipopótamos e detalhes de alguns materiais usados na caça.

Em A Pessoa é para o que Nasce, os cortes são rápidos, secos, diretos, São inserts rápidos das personagens em suas casas, ou na rua tocando seus ganzás. Os planos-seqüência são curtos, mas presentes no filme de Berliner. Vemos uma passagem com as três irmãs cantando uma de suas canções. A letra da canção nos remete não a uma saída da linha de seqüência do documentário, mas a mais uma descrição feita pelas personagens, afinal, a letra narra fatos que elas vivenciam. Coisas pessoais e sentimentos das próprias irmãs.

A partir da música, o documentário perde a característica social exatamente, e ganha um foco pessoal, o que nos remete a proximidade com as personagens. Em O Circo, de Arnaldo Jabor, aparece no documentário brasileiro esta característica, de aproximar o mundo das personagens apresentadas no filme com o expectador. A personagem sai da representação da massa, ou de uma classe social, e passa a ser uma pessoa própria, com sua vida pessoal sendo revelada. Jabor acompanha um dos saltimbancos e mostra crianças, mulheres, a vida da personagem com sua família e seu dia-a-dia (sua moradia, seus objetos pessoais). Seguindo esta linha, Berliner consegue trazer das três irmãs, sentimentos pessoais, narrativas sobre os maridos que tiveram, uma delas inclusive criticando o marido sobre problemas pessoais entre o casal. Outra fala sobre seus sonhos e desejos. A música composta por elas volta a entrar em cena, elas falam sobre seus sonhos, suas angústias, e novamente voltamos para a narrativa delas sobre os maridos.


Técnica de Filmagem

Na técnica de filmagem não há o uso de câmeras diretas, planos-seqüência longos ou de cenas sem cortes. Mas esta técnica é feita com base no cinema que Berliner aprendeu ao estudar Rouch; Rouch trabalhou no cinema direto francês com estes planos-seqüência longos e o não uso do corte constante, mas em alguns filmes já da década de 70, vemos Rouch utilizando de planos com cortes e inserts de closes ou close-ups. Berliner usa da câmera de mão (handcam) e em algumas cenas, como por exemplo, nas cenas em que as três irmãs estão cantando e tocando, ele caminha com esta câmera.

Na sua versão posterior, a versão longa-metragem deste documentário, Berliner caminha mais com esta câmera seguindo as personagens com o uso de um hand-travelling, ou seja, como se a câmera fosse a visão de uma personagem, uma outra personagem que acompanha as personagens principais.

Há um jogo de efeitos visuais criando novamente a estética da visão das três irmãs com deficiência visual, no entanto, desta vez, não é uma ficção em cinema de descrições de sonhos destas personagens, mas sim, o olhar de uma delas sobre os fatos em ocorrência. Assistimos a uma cena do documentário como se fossemos uma delas, como se estivéssemos com a deficiência visual apresentada por elas.

A ficção toma conta apenas com um insert da imagem de um olho, objeto principal do motivo que relevou o processo de escolha das personagens: mulheres com problemas visuais que levam a vida ganhando trocados na rua, tocando ganzás e cantando músicas de autoria própria.

O jogo de closes é bastante forte pois estamos diante de pessoas que não escondem suas deficiências físicas visuais e nem mesmo alguns problemas de cuidado gerados pela pobreza. Elas não escondem os olhos por detrás de um óculos e isto fica bastante forte. O documentário canadense do final dos anos 80, criou uma expressão, “Real Scene”. O responsável por esta expressão foi Arnie Gelbart, fundador da produtora canadense Galafilm. Esta expressão remete ao cinema real, a cena real que não esconde a verdade, nem disfarça a realidade. “Se um homem está com uma ferida no peito, não vou filma-lo de costas, mas sim mostrar que ele está ferido, pois na realidade ele está mesmo ferido”, diz Gelbart.

Entra em jogo o cinema verdade ou cinema direto. Berliner faz questão de em todas as cenas intensificar isto e este seu jogo de closes, principalmente na cena que ocorre aos 5 minutos exatos do documentário, fechando o filme. Para fortalecer esta idéia de “real scene” ou de cinema direto sem modificações da realidade, uma das personagens entra falando sobre o fato de que elas aceitam serem como são, pois não se pode mudar o que é (fisicamente), ela cria a expressão ‘A Pessoa é para o que Nasce’, que torna-se o título deste documentário.

O Som Direto, Ótico e a Trilhas Sonora

Conforme colocado, som é direto, com o som ambiente em uso maior. Há a interpolação das cenas em que as personagens cantam as canções compostas por elas mesmas e há um uso de trilha bastante pequena, provinda dos instrumentos e mãos das próprias protagonistas. Não vemos diretamente o som ótico. O som ótico, termo usado no cinema atual, caracteriza o cinema mudo que constrói o som pela imagem. Hoje este som ótico é usado como estética poética e artística do cinema. Em A Pessoa é para o que Nasce temos as cenas em que são mostradas ficcionalmente as visões das protagonistas. Nestas cenas temos uma leve trilha sonora, mas o o que Berniler consegue com estas cenas é na verdade nos deixar ouvir vozes e sons que não estão no filem. As nuvens e os campos verdes descritos por uma das personagens nos ‘teleportam’ para outra realidade, outro mundo, repleto de sons que não estão presentes no filme.

A Fotografia

Jacques Cheuiche, diretor de fotografia deste documentário, resgata um ar não clean para o documentário. O primeiro projeto de Berliner era trabalhar com câmeras mais modernas e imagens sem manchas com cores vivas. Cheuiche no entanto rompe esta estética, que Berliner já utilizava em seus documentários televisivos, e cria uma estética visual a aprtir da própria realidade apresentada no documentário. Não precisamos de cenário, de ambientes arrumados, temos a parede da própria casa das três irmãs, temos rua desfalcada e uma uma iluminação o mais próximo do natural. Quando a luz apaga na casa das irmãs, em uma determinada cena, podemos notar que a luz era realmente a do ambiente e que não há interferência direta de uma luz montada, uma luz de estúdio (spot, holofote etc). A um ganho assim, de realismo.


O Roteiro

O roteiro de Maurício Lissovisky e Liana Vital Brazil não serviu, como vimos anteriormente, para guiar em suam, o caminho à percorrer do documentário. Lissovisky relata em entrevista cedida ao Canal Brasil, da rede televisiva brasileira de canais fechados Globosat / Net, em 1998, durante o lançamento do curta, que inicialmente apenas escreveu um script contendo o objetivo geral, quem filmar e onde filmar. Já haviam escolhido as irmãs para filmar e ele gerenciou apenas um papel para registro desta escolha. Depois de feitas as imagens, então ele segue para seu escritório onde, assistindo às gravações junto ao Berliner, ele convida Liana Brazil e juntos fazem o roteiro pós filmagem para a edição do curta. Neste roteiro, ele segue bastante as características do cinema francês documental, no qual procura não brincar com efeitos digitais, efeitos de transição de cenas, compreendendo a importância para o cinema direto, do corte seco e do não uso de efeitos visuais, mantendo-os apenas para as cenas que descreveriam em imagens os sonhos e visões das três irmãs, protagonistas do documentário.
Berliner passa a idéia destas cenas para Lissovisky e Liana Brazil, e eles preparam a narrativa visual de maneira genial. Não brinacam com cenas fantásticas ou imagens poéticas, mas sim com imagens diretas assim como descritas pelas protagonistas. Liana ainda sugere, segundo diz Lissovisky, na entrevista cedida ao Canal Brasil, que as cores fossem bastante respeitadas às descrições das personagens. Berliner coletou algumas descrições extras, que não se encontram no documentário, para realização de tal característica, estética visual. O que as irmãs, com toda a deficiência visual, entendem por cor? Como elas descrevem as cores, visto que elas não as enxergam?

No início do documentário, na primeira cena feita nesta estética, temos uma das irmãs relatando que em seu sonho ela vê ‘... o mato verde...”. Isto chama a atenção de Berliner que procura investigar entre as protagonistas, como é este verde para elas. Lissovisky e Liana Brazil acreditam que este é um ponto importante para se explorar no documentário e principalmente na sua estética. Então podemos levantar uma indagação.






Direto, Real, ou Direcional?

Se Berliner trabalha com o cinema direto e busca deixar isto bastante claro em seu documentário, como então podemos descrever este uso estético que interfere no direto? Então notamos que a concepção narrativa, o contexto real é prevalecido, ou seja, as irmãs são mostradas como elas são. Não há interferência nas falas delas, que são espontâneas, não há interferência de cenário, e nem de figurino. A interferência, como relatado no texto acima, era do diretor e sua equipe e o fato das protagonistas saberem que estavam sendo filmadas. Mas até este ponto, tudo relacionava ao cinema direto francês de Rouch ou o cinema novo de Jabor.

Esta estética visual não têm tamanha relevância quanto aos fatos, a não ser pela sua interferência que nos leva a refletir sobre o modo de ver das personagens. Seria esta uma intervenção forte e talvez argumento para retrair o filme da sua posição de cinema direto? No entanto, a um ponto importante a ser levantado. O cinema das cores já estava em rigor nos anos 50, 60 e 70, e ainda assim muitos diretores do cinema verdade / direto francês e do cinema novo brasileiro utilizavam-se do documentário preto e branco.

Ao trabalharem com uma película preta e branca, a monocromia da não-cor talvez gerasse também uma estética diferenciada, no entanto, pela época em questão, talvez o público estivesse mais aproximado desta linguagem.

Quando entra o cinema da cor nos documentários, talvez os primeiros à serem exibidos tivessem gerado análises, interpretações bastante diferenciadas do objetivo primário do diretor. As cores influenciavam muito na leitura da época, hoje elas são, muitas vezes, influenciadoras, pelo jogo de montagens destas cores e efeitos visuais.

Berliner se aprimorou deste uso das cores, mas não perdeu desta forma o “real scene” de Gelbart. As cores mexem na estética visual de alguns segundos de filme, mas não retribuem signos e significâncias aos preceitos das cenas livres e reais, o roteiro não foi baseado neste jogo de cores e nem mesmo neste direcionamento. Pois o documentário, nos revela as três irmãs, nos mostra quem elas são e o que fazem, mas de forma bastante subjetiva, não relatam nomes, dados técnicos e nem mesmo situa geograficamente e temporalmente. Somos levados apenas a ver três mulheres falarem sobre si mesmas e sobre seus sonhos e desejos.

Como contraponto, nos vemos agredidos pelo nosso preconceito embutido. Estamos acostumados a ver os cegos por outra perspectivas, pessoas isoladas do mundo por sua deficiência, que dependem de ajuda para viver. No entanto o choque da estética nos faz ver o mundo como elas, e a narrativa das personagens geram inquietações. Os deficientes visuais não são exatamente como pensamos que eles são. Eles tem uma vida bastante próxima das nossas, exceto pela limitação visual.

Quando Berliner resolve deixar toda narrativa no direto é exatamente isso que ele nos proporciona. Este contraponto no entanto é retorcido, na versão posterior, o longa-metragem, onde falas do diretor e o voice-over acabam tomando conta do roteiro. Isto acontece talvez pela estética do cinema atual e pelo público que hoje freqüenta as salas de projeção.

Um cinema direto ao estilo Rouch, Godard, Sabino ou Jabor, talvez não fosse tão aceito quanto o cinema estético atual provindo dos avanços tecnológicos e da nova linguagem documental exigida no mundo contemporâneo – nossa realidade é outra; nossa voz de Deus é outra; nossa voz do povo é outra, pois nosso povo é outro, nossos problemas são outros. Mas ainda assim, A Pessoa é para o que Nasce permeia entre estes dois mundos – o documentário verdade ou direto dos anos 50, 60 e 70, seja no Brasil, seja no Canadá ou na França e o documentário atual.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Um Cão Andaluz

Um Cão Andaluz

análise da imagem concreta e abstrata
na elaboração do filme.

Por Igor Capelatto

A estrutura técnica de Um cão andaluz é simplesmente um jogo de pequenos storytellers nos quais a própria imagem é o narrador. Ela é toda a cena, suprindo a necessidade de um som, de um diálogo ou de algum texto. Um cão andaluz não é enquadrado nos nossos preceitos de cinema. Segundo Roger Ebert[1], a técnica da não-linearidade ou da não-construção de uma seqüência de história (trama) é algo que nossa mente não está apta a aceitar, todavia é a genialidade que rompe os sentidos humanos adquiridos por costumes ou impostos ao homem por meio de uma sociedade.

Reconhecemos assim um filme com cenas aleatórias. No entanto, se analisarmos esta aleatoriedade segundo Carl Gustav Jung[2], notaremos o quanto ela talvez tenha sim uma seqüência de história. Cada cena foi jogada ao acaso, como planos-seqüência isolados, sem nexo entre um e outro, mas pelas teorias de Jung podemos entender que mesmo imagens sem seqüência, colocadas aleatoriamente uma seguida da outra, de alguma forma, esta seqüência supostamente aleatória foi construída pelo inconsciente humano. No caso, pelo inconsciente de Buñuel e Dalí.

No entanto, por ser subjetiva e inconsciente esta seqüência de cenas, torna-se quase que uma terapia dos autores surrealistas de Um cão andaluz. É muito pessoal o processo. O filme então é reconhecido pelos críticos como um filme-imagem, pois são as imagens mais fortes do que qualquer outro elemento cinematográfico em cena. As imagens superam até mesmo a técnica (ângulos de câmera, takes, atores e efeitos especiais) pela qual foram filmadas, se bem que o corte no olho nos instiga a querer saber mais como a cena foi feita, mesmo sabendo do uso de um olho de animal, a construção, a montagem da cena nos parece ainda impossível, se imaginarmos a tecnologia da época.

Numa análise primária destas imagens, Erika Savernini[3] nos revela em sua tese a necessidade de trabalharmos com a imagem real e a imagem imaginária. A imagem real é aquela que nos conduz a vermos a cena com olhos de possibilidade, ela é uma cena possível, concreta. A imagem imaginária, por sua vez é aquela que nos conduz a um processo de imaginação, uma cena que não conseguimos ver a imagem na sua concretude, como o osso desencarnado.

Para Jacques Amount[4], a imagem concreta é aquela que existe enquanto temos referências reais dela, e a imagem abstrata (imaginária para Savernini) é aquela na qual não temos referências reais. Podemos associar estes conceitos à dicotomia das imagens de Um cão andaluz. Buñuel e Dalí talvez não tenham tido consciente pensamento sobre estes conceitos, mas de certa foram o inconsciente deles teve. As formigas na mão constroem um imagem concreta, pois conhecemos formigas, temos noção do que é levar uma picada de formiga e imaginamos o qual seria terrível tê-las em nossas mãos, de certa foram nos devorando. Já a famosa cena do corte no olho é um conceito abstrato, uma imagem abstrata, pois não temos a referência do que é ter o olho cortado (e mesmo que alguém a tenha, esta pessoa sim, tem a referência, mas ela não é comum, universal, podemos imaginá-la, mas não temos referência da dor ou sensação).

O concreto para Amount é também o saber interpretar a imagem e o abstrato é quando não somos capazes de interpretar os signos presentes naquela imagem. Amount coloca que “um quadro de Picasso é considerado abstrato, pois emerge diversos significados, que não são comuns entre os observadores deste quadro, e muitos não-significados, ou seja, não é uma imagem com um significado pronto”. Podemos dizer que os quadros de Dalí têm o mesmo efeito, talvez até mais fortes e talvez mais forte ainda seja a construção de seus filmes junto a Buñuel que criam as cenas e seus movimentos da mesma forma com que elas foram sonhadas pelo artista surrealista.

A cena do piano é uma cena bastante forte enquanto imagem. Um homem empurra um piano, mas por que um piano e não um vagão de trem que é mais pesado e daria, talvez, mais tensão à cena? O piano é um ícone que inconscientemente traz muitos significados, tendo Jung mesmo estudado seus significados. Podemos observar que quando queremos mostrar algo muito pesado caindo, não jogamos uma geladeira pela janela, mas sim um piano. Os desenhos animados da Hanna-Barbera, da Warner Bros. ou até mesmo da Walt Disney Company trazem este jogo de imagem – um piano que cai pela janela de um prédio e se espatifa no chão, ou um piano que cai através dos degraus de longas escadas.

O homem puxando o piano em Um cão andaluz é uma cena anterior a estes desenhos animados, é construída para adultos assistirem, mas o ícone do piano nos desenhos animados é uma ilustração de como este símbolo é forte no inconsciente humano. Talvez a imagem concreta esteja mesmo fluindo no filme apenas como uma representação associativa da imagem abstrata. Pois se o piano é representação de um sentimento resguardado no inconsciente, ou seja, um signo abstrato, ao mesmo tempo podemos nos imaginar empurrando um piano.

Ainda, segundo Jung, a construção da imagem pode causar dois tipos de medo, se seu objetivo é esse de nos incomodar na sensação do ‘pode acontecer conosco’. O concreto causa medo decorrente, perceptível, e o abstrato causa o medo do desconhecido. A criança com medo de perder a mãe é o sentimento concreto, e a criança com medo da mão do monstro que está debaixo da cama e vai pega-lo durante a noite é o sentimento abstrato. A mãe existe e pode morrer, o monstro não existe, mas pode pegá-lo.

Um cão andaluz traz essa analise ao plano principal. Um osso é concreto, mas ele desencarnado é abstrato. Temos medo das formigas, “se vermos”, segundo Savernini, “um monte de saúvas subindo em nossa perna, temos a estranha sensação que a personagem de Um cão andaluz teve”, porém por não termos o registro da sensação do olho cortado, “não temos a sensação da personagem de Um cão andaluz mas uma sensação imaginária construída pela nossa mente, a iminha imaginação e medo deste sentido não será a mesma de outra pessoa. Se eu ver uma navalha se aproximar de mim, talvez eu até coloque as mãos sobre os olhos para protegê-los”.

Signos isolados causam estranhezas e significâncias personalizadas. Em Um cão andaluz poderíamos analisar cada uma das cenas isoladamente e teríamos teses e mais teses sobre elas. Poderíamos encontrar diversas percepções e análises sobre estes signos concretos e abstratos, sobre a imagem real e a imagem imaginária. No entanto não estamos lidando com quadros, com pinturas ou fotografias, e sim com cinema. Cinema é a construção de imagens em uma seqüência – a seqüência de imagens, mesmo que aleatórias. Desta forma muitas vezes a cena, no cinema, mesmo que seja independente no contexto de outras cenas, ela é intensamente influenciada pela cena anterior e posterior a ela. O olho sendo cortado nos traz a significância, no contexto geral do filme, de que é melhor que ele seja mesmo cortado do que vermos os ‘horrores’ que se seguem adiante. Uma ‘censura ao sentido humano da realidade’ conforme coloca Savernini. A autora retrata que se vermos a cena da mão com formigas isoladamente, ela é uma cena com certos significados que podem remeter a devoração da carne humana, a não possível sensação de concretude, de pegar algo, a mão que é frágil e que tudo sente – através do toque – “o tato como extrema importância”. Mas ela seguida da cena do corte no olho “transmite que o tato é só mais um sentido sensorial que está sendo degradado, destruído pela realidade. Pois o olho, que é talvez o mais intenso de todos os sensores humanos já foi destituído de sua função”.

Enfim, Um cão andaluz é totalmente subjetivo, mesmo na sua concretude e podemos então, pela necessidade humana de relacionar fatos, encontrar uma lógica seqüencial na sua trama. Uma seqüência que talvez estivesse dentro do inconsciente de Dalí e Buñuel. E mesmo o nome do filme, por mais aleatório que tenha sido, remete ao tipo de cachorro que provoca medo nas pessoas na Espanha (terra natal de Buñuel e Dalí), a raça de cachorro usada para caça, pelo exército, que é treinada a devorar homens – os cães andaluz. E Um cão andaluz devora os nossos sentidos humanos.

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[1] EBERT, Roger. A magia do cinema. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

[2] JUNG, C. G.. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

[3] SAVERNINI, Érika. Índices de um cinema de poesia: Píer Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

[4] AMOUNT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papirus, 1993.