quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Quando Caem as Estrelas - instinto e arquétipo no Surrealismo

por Igor Capelatto


entr'act - rene clair


O processo imagético cognitivo expressado pelo inconsciente transcende a retórica do signo rompendo as barreiras de sua mensagem dicotômica, vazando por entremeios de sua funcionalidade de portador da mensagem ou de fragmento dela, gerando outros significados e propriedades para a imagem composta no universo dos impulsos elétricos. Esta imagem outrora simbólica e expressada por meio de significações é induzida no campo material tornando-se palpável, do seu real imaginário passa para um real tátil. Enfrentam-se dissonâncias e ressonâncias de suas múltiplas interpretações. É necessário entender que o universo do signo não está desassociado dos sentidos perceptivos que são capazes de compreender o campo das imagens como um espaço concreto, uma arquitetura que pode ser tocada. Ao libertar-se das exigências da lógica e da razão, encontramos uma zona de vizinhança com a natureza da órbita do Surrealismo.

A arena mais próxima na qual talvez nasçam todos os signos, segundo André Breton (1896-1966), autor do Manifesto do Surrealismo, é o sonho. Os impulsos cerebrais do inconsciente de alguma maneira não passariam de ferramentas geradoras de signos. Não seria o sonho uma manifestação do cérebro, mas todas as manifestações estariam presentes dentro dos sonhos. Traduzir os sonhos em pinturas, fotografias, textos, filmes ou quaisquer continentes artísticos seria uma maneira de revelação desse mundo outorgado ao confinamento exclusivo do sono revelando sua existente fisicalidade.

Joseph Campbell (1904-1987) em O Poder do Mito conta a experiência de um xamã ao entrar em contato com o mundo das imagens dos sonhos. Quando se depara com aqueles inúmeros signos, o xamã encontra respostas para as ações de sua tribo além de muitas previsões. Quando o transe cessa, Campbell pergunta ao xamã se este havia voltado para sua sã consciência e a resposta do velho índio é de que ele nunca havia deixado de estar consciente, mesmo enquanto navegava pelo mundo dos sonhos. O xamã finaliza dizendo que o mundo dos sonhos é tão real e presente que é difícil saber quando estamos habitando um mundo ou outro.

Salvador Dalí (1904-1989) certa vez levantou uma indagação se o que ele pintava eram as imagens do mundo dos sonhos ou se o mundo em que ele habitava para pintar seria o universo dos sonhos e ainda, se o que ele pintava é que seria manifestação deste outro mundo ao qual as pessoas chamavam por convenção de real. Dali gostava de dizer que todas as imagens, aquelas que as pessoas chamavam de reais e aquelas que seriam provenientes dos sonhos, estariam no mesmo estágio, interagindo e coexistindo entre si e assim, e as referenciava como “representações reais dos mitos e arquétipos”.

Para Campbell, “o mito é uma manifestação em imagens simbólicas, metafóricas, das nossas energias internas, mobilizadas pelos órgãos do corpo em conflito entre si. Este órgão quer isto, o outro quer aquilo”. Esta dualidade seria capaz de reger forças que reorganizam os conceitos e noções que temos do que seria o real. Este real que se faz presente no campo do consciente.

Carl Gustav Jung (1875-1961) coloca que o consciente é orientado para o presente imediato e seu próprio ambiente o que traz uma lógica direta de associação com a primeira instância palpável deste pressuposto real. Campbell apresenta a possibilidade de que o presente talvez não exista desta forma imediata, pois talvez não haja um imediato, sendo imaginável que o eterno seja o presente. Para o Surrealismo não há diferenciação entre passado, presente e futuro, o tempo é eterno e de alguma forma etéreo. Não havendo distinção entre os chamado real e imaginário, não havendo um tempo linear, os signos são incitados a existirem por si mesmos, e sendo esta autonomia infinita, Campbell a associa aos arquétipos.

Signo, do grego secnon, denomina-se parte. O não-todo deste meio, da imagem, exige uma busca de traduções através do processo de semiose[1] repercutindo numa tentativa de transformar o signo em um todo. O que completa o signo, para os surrealistas, e o transforma em um todo, é o processo de afirmação da concretude de sua existência, quando as imagens são excitadas a existirem por si só, pois são objectos que recebem significações que estão além das explicações por meio de uma linguagem determinada pelo homem. Objectos que passam a serem compreendidos como símbolos. Jung profere que “um símbolo não traz explicações; impulsiona para além de si mesmo na direção de um sentido ainda distante, inapreensível, obscuramente pressentido e que nenhuma palavra de língua falada poderia exprimir de maneira satisfatória”.

Dentre os surrealistas contemporâneos de André Breton, havia uma aceitação de que a tradução ou transcrição dos sonhos tornando-os reais e palpáveis era quase que um instinto, pois o sonho por sua vez deveria de ser resultado do instinto. Instinto, para Jung é “um impulso natural, cego e dirigido para certas ações, sem deliberação e, muito freqüentemente, sem uma representação na consciência”. Talvez, assim, o instinto fosse um impulso do inconsciente. Dalí dizia que não temos controle sobre os signos, sobre as imagens de nossos sonhos. Agimos muitas vezes sobre impulsos aos quais não temos domínio; “é quase como se nossos instintos primitivos viessem à tona, são reações instintivas que temos quando deparamos com a realidade dos sonhos”.

Este ser primitivo que age pelos instintos transfigura uma constância de ações as quais ele não tem autonomia, Campbell associa a uma marionete, a qual há um ser maior que controla todos os seus movimentos, todas as suas atitudes, e coloca que “quando este ser primitivo tem pela primeira vez a ação de olhar o sonho e querer compreendê-lo” surge o primeiro homem pensante, chamado por Edgar Morin (nascido em 1921) de sapiens-demens.

Em muitas culturas primitivas, observa-se que o surgimento do homo-erectus está muitas vezes associado à adoração de um ser superior, muitas vezes instintiva. O homo-erectus tem uma necessidade de se elevar ao ser superior. Campbell diz que “muito diferente do que o ser pensante, o homem primitivo elevava-se, pois a idéia de existir um ser superior a ele remetia à idéia de que este ser estaria acima dele, no céu”. Entretanto o ser pensante não olha mais para cima, quando o sapiens-demens começa a confrontar os signos e tenta compreende-los, ele se julga superior ao ser ou seres que ‘estão nos céus’ e assim não mais se eleva a ele(s). “Há uma necessidade de se curvar diante dos deuses, não como um ato de adoração, mas como um meio de se castigar e afirmar o pecado que há dentro de nós”, diz Campbell e lembra que “antigamente, na igreja católica, os padres ficavam de frente para o altar e rezavam a missa olhando para o deus cristão”.

Compreender os signos e dominá-los, ou “interpretá-los a nossa necessidade” como coloca Jung, leva o homem a um status que o torna dominador de suas pulsões, porém, “estas pulsões, ou instintos, são tão fortemente vividos por uma autonomia” que, segundo Campbell, “gera o caos”. E o caos é “resultado de uma desordem dos signos refletidos nos conteúdos universais, os fenômenos de natureza coletiva”. Os arquétipos são tão necessários ao homem, em sua busca de existência, que não vivenciá-los, ou ignora-los, é o motim de todo este caos. O signo perde seu significado. Não havendo mais o interprete, o signo fica sem sentido e mesmo em sua autonomia, começa a existir em um mundo isolado e o homem passa a não mais compreender os símbolos que regem a existência de todas as coisas. Para Jung, o arquétipo “é a percepção do instinto de si mesmo ou como o auto-retrato do instinto”. Os arquétipos são “reflexos das necessidades primitivas do homem, como a necessidade da mãe protetora, os impulsos de vida e morte encontrados nos deuses (...) e toda uma necessidade diante das transformações culturais”.

As representações dos sonhos para os surrealistas compreendiam em sua maior parte um encontro com os arquétipos e a identificação destes arquétipos resultaria em uma análise primária na orientação das buscas inconscientes do artista que a representou em sua obra. É possível neste contexto fazer uma analogia entre arquétipos e desejos. Muitos desejos humanos se assemelham aos arquétipos.

Jan Svankmajer (nascido em 1934), acerca do principio do surrealismo, diz: “arquétipos são eternos signos necessários para a existência humana. A arte tenta representa-los, o Movimento Surrealista surgiu com o intuito de expressa-los e ir além: torna-los palpáveis”. Svankmajer ainda coloca que “na arte a representação do arquétipo não está presente somente na imagem criada pelo artista, mas na maneira como o artista executa sua obra”. Como eram presentes os arquétipos anima e animus na obra de Salvador Dali, segundo Breton “muitas das obras dalinianas representativas dos arquétipos anima e animus foram concebidas na presença de Gala, sua mulher”. Em Man Ray o arquétipo da Grande Mãe é reconhecido não diretamente em sua obra, mas no fato de que a primeira metade de sua produção (tanto dada quando surrealista) fora desenvolvida nos aconchegos de sua mãe. Breton comenta que “Ray buscava oposições entre a imagem revelada e a imagem negativa contorcendo a visão de preto e branco, do espaço em que o objeto estava inserido e o espaço que ele representava, como a criança, ainda em germinação, dentro do útero materno. Man Ray transpassa da mãe-comum para a grande mãe quando exterioriza o útero e o torna universal, o útero que nos liga por um cordão umbilical representado pela imagem de um prego.”

Campbell nos mostra que a arte, a religião, enfim, os meios sublimatórios são veículos de comunicação entre o homem e os arquétipos. De maneira diferente, a arte transcende a religião, pois não depende de uma crença universal, apesar de seguir normas e padrões coletivos, “o artista pode desenvolver sua própria maneira de produção e uma arte extremamente pessoal”, enquanto que “as regras religiosas são mais exigentes”. Coloquemos aqui a comparação que Salvador Dalí fez de seu Método Crítico-Paranóico com uma religião. Para Dalí, seu método é “como uma religião, tem todo o seu ritual, tem suas regras e seus deuses próprios, porém não depende de um grupo de pessoas para existir. (...) O católico, por exemplo, pode existir sozinho, mas o catolicismo só existe enquanto coletivo. Eu não preciso me juntar ao Lorca ou ao Picasso para que a minha obra surrealista exista. Sozinho no meu ateliê faço existir o Surrealismo”.

Mas “o coletivo é tão presente e necessário que a busca sublimatória se torna mais facilmente palpável em contextos os quais o indivíduo encontra os arquétipos explicados. Na religião é facilmente visível. Como se os arquétipos viessem com um manual, um dicionário”, reforça Campbell. Se para cada indivíduo o arquétipo estará ligado a uma individuação, "seria inconveniente determinar os significados, tornar os signos elementos únicos de significação, fechados e sem possibilidades de se transformarem – mas o consciente se separou do inconsciente e os signos começaram a perder suas multiplicidades. O dragão que outrora representava força, nascimento, ou morte, em muitas culturas contemporâneas ele representa apenas um passado fantasioso do mundo medieval ou as festas do extremo oriente”.

“É necessário sublimar”, diz Campbell referindo-se a autores da psicologia contemporânea, “independente da maneira pela qual, a sublimação é a fuga da realidade perturbadora do inconsciente que vaza por meios palpáveis para que a pessoa possa exteriorizar os seus demônios internos”. Os signos, arquétipos, toda imagem proveniente das profundezas do inconsciente devem coexistir com o plano o qual chamamos de consciente, pois o homem é regrado pela relação entre estes dois universos. “Transcender os signos é torná-los superiores ao domínio humano. A arte da sublimação é deixar com que estes signos saiam do plano ‘astral’ e pisem em terreno firme, que se tornem objectos táteis, deixar com que a estrela caia, para que possamos pega-la”.

“Por isto, não admira que tenha sido sempre uma questão candente para os homens de todas as épocas e todas as religiões saber qual a melhor maneira de se posicionar diante destas determinantes invisíveis. Se a consciência nunca se tivesse dissociado do inconsciente – acontecimento que se repete eternamente e que é simbolizado como queda dos anjos e desobediência de nossos primeiros pais – este problema nunca teria surgido nem tampouco a questão da adaptação às condições ambientais... da mesma forma que o meio ambiente assume um aspecto amigável ou hostil para o homem primitivo, assim também as influências do inconsciente lhe parecem um poder contrário com o qual ele deve conviver como convive com o mundo visível. Suas inúmeras práticas mágicas servem a esse objetivo. No nível mais alto da civilização, as religiões e as filosofias preenchem esta mesma finalidade e, sempre que um tal sistema de adaptação começa a faltar surge um estado geral de inquietação e fazem-se tentativas de encontrar formas adequadas de convivência com o inconsciente” , coloca Jung.

Para finalizar, podemos citar um velho ditado chinês, lembrado por Campbell: “Aquele lugar onde as imagens navegam sozinhas - deixe que ele determine o seu caminho. Não tente domina-lo, pois somos pequenos pontos neste imenso céu”.

BIBLIOGRAFIA

BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.

CAMPBELL, Joseph. Mito e Transformação. São Paulo: Editora Ágora, 2008.

DALÍ, Salvador. Líbero contra a arte moderna. Porto alegra, RS: L&PM Editores, 2008.

JUNG, C. G. A dinâmica do inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984.

JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

KING, Elliott. Dalí, Surrealism and Cinema. Reino Unido: Kamera Books, 2007.

PONGE, Robert. Surrealismo e Mundo Novo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1999.

REFERÊNCIA VIDEOGRÁFICA

O Poder do Mito, DVD, COR, 354 minutos, EUA. 1988, diretor: MOYERS, Bill.

REFERÊNCIA DE INTERNET

Dicionário Crítico de Análise Junguiana - www.rubedo.psc.br, acessado em Novembro de 2009.

Jan Svankmajer - www.jansvankmajer.com, acessado em Novembro de 2009.



[1] Semiose: 'todo processo em que algo (veículo significativo) funciona como sinal de um designatum (aquilo a que o sinal se refere), produzindo um determinado efeito ou suscitando uma determinada resposta (interpretante) nos agentes (intérpretes) do processo' (SILVA, V. Teoria da Literatura, 1986, p.181)